A HISTÓRIA DA HUMANIDADE ESCRITA EM SEU DNA


CIÊNCIA O desenvolvimento da genética permitiu decodificar o genoma humano e, em parceria com a antropologia, reformulou o conceito de “raça

A história da humanidade escrita em seu DNA
POR MÁRCIO WALTER MACHADO

Com a ascensão do nazismo ao poder, na década de 1930, o conceito de raça pura, forjado pelo filósofo francês Arthur de Gobineau em meados do século XIX, criou força na Alemanha e em vários países europeus. No lastro dessa ideia, milhões de pessoas foram brutalmente assassinadas, a eugenia (limpeza ou purificação social ou étnica) tomou vulto, e as consequências do ódio racial, justificado pela ideologia da época, até hoje são vistas e sentidas em todo o planeta.

Entre os anos de 1990 e 2003, entretanto, mais de 5000 cientistas, com a ajuda de vários governos, se uniram num esforço planetário para mapear (e, posteriormente, sequenciar) o genoma humano – o conjunto de todos os genes existentes em homens e mulheres. Esse projeto (cujas primeiras articulações datam de 1988) tinha entre suas ideias principais decodificar as então conhecidas 3 bilhões de bases nitrogenadas que compõem nossas células a fim de gerar avanços no conhecimento da biologia humana para fins científicos, como encontrar a cura para doenças genéticas (SAIBA MAIS AQUI).

No entanto, mesmo trazendo a possibilidade de descobertas capazes de mudar a vida dos indivíduos e de populações inteiras mundo afora, o Projeto Genoma Humano não deixou de suscitar controvérsias. Fora do meio científico, por exemplo, começou-se a especular que as pessoas seriam julgadas não só fenotipicamente (pelas características físicas visíveis), mas genotipicamente (e.g., pela probabilidade de desenvolver doenças genéticas que cada um traria inscrita em sua composição), o que seria mais um fardo que uma ajuda, uma vez que alguém poderia ser biologicamente discriminado, minorias genéticas teriam negados direitos fundamentais, planos de saúde poderiam cobrar mais caro se o cliente tivesse predisposição para males, etc.

Por conta disso, a partir de 2005, foi adotada pelos países membros da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, necessária para proteger as pessoas, no intuito de que ideias de limpeza biológica (como foi sugerido pelo filme GATTACA, de 1997) não se tornassem reais.
Na onda dos que viam o Projeto Genoma Humano com ressalvas, estava o geneticista italiano Luigi Cavalli-Sforza, que o considerava reducionista da multiplicidade e variedade genéticas humanas por tomar como base apenas um ínfimo grupo de indivíduos (europeus) para a decodificação do material genético de toda a humanidade. Isso, para Cavalli-Sforza, seria fechar os olhos a toda a diversidade genética desenvolvida pelo Homo sapiens em mais de 150 mil anos (ultimamente tem-se falado de algo em torno dos 300 mil anos) de evolução, nos quais populações de diferentes regiões do planeta formaram mecanismos adaptativos distintos para continuarem a viver e multiplicar-se.

Porque, mesmo sendo os homens essencialmente iguais, no processo evolutivo, as diferentes populações se adaptaram às benesses e agruras da existência de forma única, e os resultados disso têm sido passados de geração em geração por meio do DNA, propiciando, dentro da unicidade, características peculiares a cada povo.

Por esta razão, paralelamente ao PGH, um grupo de geneticistas liderados por Cavalli-Sforza, criou o Projeto da Diversidade do Genoma Humano a fim de mapear, prioritariamente, as populações indígenas dos cinco continentes, que, por estarem isoladas cultural ou geograficamente, também teriam preservadas em seu DNA informações sobre nossa origem e evolução, entre as quais a resistência (ou falta dela) às diversas doenças. 

O PDGH criou, então, um banco de dados contendo o material genético de 51 populações mundiais nativas (observe a imagem abaixo ) o qual, assim como os resultados encontrados pelo Projeto Genoma Humano, é de alcance público.

Fonte: http://journals.plos.org

Com base nos estudos e resultados oriundos dos projetos de investigação e leitura do genoma e das características populacionais peculiares aos povos de diferentes continentes e regiões segundo seu DNA, a genética, junto com a antropologia, a despeito do que postulava a ideologia de Gobineau e dos nazistas, conseguiu traçar a linhagem humana até centenas de milhares de anos atrás, e provou por A mais T (e C mais G – as quatro substâncias básicas que compõem o DNA) que todos os homens e mulheres do planeta têm os mesmos ancestrais Homo sapiens comuns oriundos do leste do continente africano e que o conceito de raças, de base ideológica, é simplesmente “social, não científico”, pois “todos nós evoluímos nos últimos 100.000 anos do mesmo grupo diminuto de tribos que saíram da África para colonizar o mundo”, conforme disse, em entrevista ao New York Times, J. Craiger Venter, fundador da empresa Celera Genomics, e uma das mentes responsáveis pelo sequenciamento do genoma humano.

Imagem: skithub.com/editada
DE ONDE VIEMOS?
A resposta para essa pergunta, em outros tempos, residiria apenas no âmbito especulativo e escorregadio da filosofia e da teologia. No entanto, hoje a maioria dos cientistas acredita que genética e antropologia podem juntas respondê-la de forma precisa e, no dizer dos mais empolgados, "inquestionável". Yuval Noah Harari, PHD em História e Professor da Universidade de Israel, escreve em seu livro SAPIENS, UMA BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE, que há 150,000 anos uma população de seres humanos, exatamente como nós, habitava uma pequena parte da África Oriental.

Esses indivíduos, 75 mil anos atrás, saíram do lugar onde viviam em direção à Península Arábica e, daí, para o resto do planeta. Percorrendo uma trajetória que pode ser traçada de forma exata pela ciência. Isso se dá, porque à medida que pequenos grupos marchavam em diferentes direções, afastavam-se, no decorrer de dezenas de milhares de anos, uns dos outros e, “quando uma população se isola das outras, ao longo da história evolutiva, mutações que acontecem em uma, não são transmitidas para outras porque há uma barreira, que pode ser de diversas naturezas, entre elas”, conforme explicou ao NEWSBASTIDORES Luiz Eduardo Del Bem, Pós-doutor em Expressão Gênica e Evolução Animal pela Universidade de Harvard e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 Mapas de migração e haplogrupos humanos segundo DNA Mitocondrial e Cromossomo Y - Fonte: FTDNA

A partir dessas mutações, chamadas de SNPs (Polimorfismos de Nucleotídeos Simples), a genética consegue traçar, com precisão, os caminhos migratórios e recriar a árvore genealógica da humanidade até os chamados Adão e Eva científicos, que viveram na África entre 120 e 170 mil anos atrás. Isso é possível porque “toda vez que a taxa de cruzamento entre duas populações diminui, a tendência é que se acumulem mutações específicas naquelas populações e que esses polimorfismos as diferenciem no decorrer das gerações”, completa Del Bem.

Essas mutações específicas são a chave para reconstruir os passos migratórios de nossos ancestrais, e, é através delas que cientistas como Brian Sykes – autor de AS SETE FILHAS DE EVA - conseguiram montar a chamada árvore filogenética humana, compreendendo os vários SNPs e localizando-os no tempo e no espaço, a fim de traçar os clãs feminino e masculino até os representantes primevos mais recentes de nossa espécie, cujo material genético reside em todos nós.

CROMOSSOMOS: A HISTÓRIA GRAVADA NOS GENES
O DNA humano é composto de 23 pares de cromossomos (observe a imagem abaixo). Desses pares, 22 são os autossomos (que se combinam e recombinam com os materiais genéticos de ambos os pais e todos os seus ancestrais). Eles nos conferem todas as características físicas e genéticas; e o par 23, composto pelos cromossomos X e Y, que, entre outras coisas, nos dão o gênero sexual feminino e o masculino.
Imagem: Internet/editada

O Cromossomo X é passado das mães para filhos e filhas e dos pais para as filhas, e o Y é passado apenas dos pais para todos os filhos homens. O Cromossomo X, entretanto, sofre recombinação ao ser transmitido para os descendentes de uma mulher; o mesmo não ocorre com o Y, que por ser único, é transmitido quase intacto para os descendentes masculinos de um homem.

Desse modo, todos os meninos têm o cromossomo Y idêntico ao de seu pai, ao de seu avô paterno, ao do pai do avô paterno, (exceto se ocorrer alguma mutação) e assim sucessivamente. Trocando em miúdos: todos os seres humanos do sexo masculino têm o cromossomo Y quase 100% igual, a partir da comparação com o Homo sapiens africano, identificado como Y-MRCA (Ancestral Comum Mais Recente – Y, ou Adão Y), que legou à humanidade seu material genético.

O cromossomo X, ao contrário, se recombina no processo de formação dos óvulos (posteriormente, do embrião) e não se pode traçar a ascendência matrilinear das pessoas por ele. Por isso, busca-se essa informação numa organela existente dentro das células, responsável pela respiração celular e pela transformação de alimento em energia: as mitocôndrias.

Cada mitocôndria tem seu próprio material genético que não se recombina e que é passado (intacto, exceto pelas mutações) apenas pelas mães para todos os filhos e filhas. É através dela que a ciência pode montar o mapa migratório da linha materna humana.
(SAIBA MAIS SOBRE AS MITOCÔNDRIAS)
Imagem: Internet/Editada

BASTA UM POUCO DE SALIVA
Os testes de ancestralidade, antes apenas acessíveis aos estudos científicos, estão ao alcance de genealogistas e curiosos dispostos a desembolsar entre pouco mais de 160 a 300 dólares para escavar e conhecer a origem de seus antepassados da linha materna ou paterna direta.

Basta comprar o kit de um dos quatro principais laboratórios de genealogia genética com sede nos Estados Unidos (para o Brasil, atualmente, apenas o FTDNA vende o teste), cuspir em um tubinho até a linha marcada ou raspar por um minuto a parte interna da bochecha com um bastão semelhante a um cotonete, enviar o material pelos correios, esperar entre seis e oito semanas e checar - na página individual online que o laboratório fornece - em que região do mundo seus ancestrais do ramo materno ou paterno direto cresceram e viveram.

Além disso, os testes de ancestralidade, através de seu banco de dados, cotejam o material dos clientes para encontrar equivalentes genéticos (DNA matches), ou seja, pessoas que compartilham as mesmas mutações e que, consequentemente, têm o mesmo ancestral comum nas últimas centenas ou milhares de anos.
Imagem: FTDNA/Reprodução
As mesmas empresas oferecem também, por valores bem mais acessíveis (entre 59 e 100 dólares), o teste que sequencia partes conhecidas dos 22 autossomos que são ricas em SNPs e que é capaz de revelar as porcentagens étnicas recentes e os chamados parentes genéticos – pessoas que têm ancestrais comuns nos últimos 150 anos -, além de comparar o DNA do cliente com o de fósseis descobertos na Europa (tanto de Homo sapiens quanto de Neandertais e Denisova, a depender do laboratório) e definir a porcentagem do material genético compartilhado com eles.

Este último teste, não só é mais uma comprovação científica de que o conceito de “raça pura” é uma falácia ideológica, pois, em consonância com a história e a antropologia, ao medir a frequência dos marcadores genéticos, ratifica que os povos dos diversos continentes, desde o dealbar da humanidade, interagem e trocam material genético através da reprodução; é também, uma ferramenta cada vez mais usada por órfãos ou pessoas adotadas que procuram por suas famílias biológicas, os quais, por meio do cruzamento das informações do seu DNA com as de outras centenas de milhares, caminhando para milhões, de pessoas nos bancos de dados desses laboratórios, podem encontrar parentes descendentes de antepassados das últimas dez gerações.

Todavia, apesar da imensa revolução criada desde a descoberta da genética e de todas as possibilidades que o seu desenvolvimento trouxe para a humanidade em todos os aspectos, especialmente com o conhecimento das mutações que conseguem definir com muita propriedade qual a origem étnica de alguém, há quem diga que os testes de ancestralidades são, na verdade, semelhantes aos horóscopos de jornais: “às vezes batem, às vezes não”. Contudo, como disse o Professor Luiz Del Bem ao NEWSBASTIDORES, “esses testes de ancestralidade são muito bons.

Eles são feitos dentro do que a gente conhece da variação genética entre humanos e podem determinar a ancestralidade com uma precisão bastante razoável e crescente. Pois a precisão depende do volume de dados que se tem, e este vem aumentando. Então, quanto mais a gente sequenciar populações diferentes, tanto mais precisos serão os resultados”, e completa: "vale dizer que todo o humano é um mosaico, uns mais outros menos. mas, de certa forma, todos são resultado de migrações e mistura de povos, que é a essência humana"E assim, diferentemente do discurso do ódio étnico e racial, a genética vem comprovando, a cada dia, que temos mais em comum uns com os outros do que a gente imaginava.

Imagem: http://understandingrace.org/

Conheça na próxima matéria como funcionam na prática os testes genéticos. O NEWSBASTIDORES conversou com várias pessoas sobre os resultados dos testes de ancestralidade e sobre o quão surpreendentes foram as descobertas feitas por elas.   

CONFIRA AQUI


Comentários

  1. Texto interessante. Fico pensando em como a ciência tem ajudado a apresentar soluções coerentes a problemas milenares. Ao mesmo tempo, fico bastante constrangido com a grandiosidade do absurdo que nós e a natureza somos.

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    1. Quiçá em um futuro próximo nossas crianças estarão conversando entre si sobre essas coisas e os adultos que elas se tornarão terão a capacidade de entender essa grandiosidade que você mencionou.
      Abraço.

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  2. Amei o texto! Ansiosa pra fazer o meu teste!

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    1. É uma descoberta emocionante e surpreendente! Nos meses em que há feriados nos EUA ou no mundo cristão (como Páscoa, Natal, etc.), sempre há promoções e o valor chega a 49 dólares, muitas vezes sem taxa de envio.

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  3. Excelente texto, muito bem construído e devidamente calçado nas evidências.
    Muito bom!

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  4. Otima reportagem!! É incrivelmente inreressante, com um texto bem gostoso de ler. Porém é muito longa, faltou um po
    uco de edição, hein?!

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