AQUARELA DO BRASIL

Foto: Márcio Walter Machado e colaboradores

 Ciência   Cada vez mais pessoas ao redor do mundo têm recorrido aos testes genéticos de ancestralidade na busca pela história de seus antepassados e pela descoberta de si mesmos

AQUARELA DO BRASIL

Quando nossa reportagem chegou à casa dos Guimarães, no bairro do Garcia, em Salvador (BA), deparou-se com uma cena muito comum aos lares soteropolitanos nos fins de semana de tarde: toda a família reunida na sala conversando animadamente sobre as histórias de seus ancestrais,  enquanto o cheiro do café recém passado perfumava o ar, trazendo à lembrança antigas anedotas de casas grandes.

O que se ouvia eram contos sobre antepassados portugueses chegando em navios abarrotados em busca de fortuna, de índias pegas na mata sem aviso, bisavós africanos talvez libertos por amor - tudo contado com certo ar de incerteza e nostalgia entre biscoitos de goma e sequilhos, álbuns de fotos antigas, testas franzidas em dúvida vez em quando e um tom solene de respeito pelo passado e os mistérios que ele esconde.

O que tornava esse encontro um pouco mais especial do que os anteriores, no entanto, era que dentro de alguns minutos as histórias que chegaram até ali, atravessando o tempo como vapor do café se esvaindo diáfano pela sala, se encontrando e desencontrando pelas sendas dos anos, teriam seus segredos revelados, seriam confirmadas de forma inequívoca ou para sempre tomadas como simples alegorias da tradição oral que vão se perdendo, se juntando a outras e se embaralhando nas lembranças, formando um quebra-cabeças que agora a genética pode ajudar a montar.

“Comprei o teste há dois meses. Hoje vamos ver os resultados”, disse o funcionário público Eurico Guimarães Júnior, explicando o motivo de aquela tarde ter se tornado diferente das outras. O teste de que ele fala é o Family Finder, comercializado pela empresa estadunidese de genealogia genética FTDNA, pioneira no ramo, o qual é capaz de sequenciar regiões dos 22 pares de cromossomos (chamados autossomos) e nos dizer, através da comparação do nosso material genético com populações específicas dos cinco continentes, de onde nossos ancestrais, recentes ou remotos, são oriundos.

"Esses testes são conhecidos como BGA, testes de Ancestralidade Biogeográfica", escreve Roberta Estes, fundadora da empresa DNAeXplain, parceira da FTDNA para análise genealógica étnica dos testes de ancestralidade. "Em cada posição do seu DNA há dois alelos que têm 1 dos 4 valores, ou nucleotídeos, representados pelas letras T, A, C e G: Timina, Adenina, Citosina e Guanina."  - as substâncias básicas que compõem o DNA - "Com base nesses valores, e na frequência em que eles aparecem nas populações de referência, conseguimos encontrar as correlações geográficas" (LEIA NOSSA REPORTAGEM ANTERIOR). 

“Estou extremamente ansioso”, confessou Eurico, “e bastante curioso para ver se as histórias que a gente escuta desde criança sobre de onde viemos têm mesmo fundamento”. Essa curiosidade por confirmar a origem étnica não é somente dele. Prova disso nos dão os números crescentes dos bancos de dados das empresas que comercializam os testes de ancestralidade desde o final de 2009, e as pessoas entrevistadas para esta matéria, as quais, como o professor e pesquisador Rafael de Oliveira Dias, de Florianópolis (SC), nos disseram que a razão principal para recorrerem a essa ferramenta genealógica foi o desejo de conhecer a si e a história de seus ancestrais.

“Eu sempre fui apaixonado pela história do Brasil”, diz Rafael, “queria entender a história de meus antepassados num contexto maior e ver se encontrava minha ascendência entre as famílias quatrocentonas do estado de São Paulo, de onde venho, e saber também se trazia em mim todos os três troncos básicos formadores da brasilidade” ( VEJA OS RESULTADOS DELE AQUI).

A brasilidade a que ele se refere é aquela que todos nós encontramos nos livros didáticos sobre a formação do povo brasileiro, a qual é basicamente composta de Ameríndios, Europeus e Africanos, porque aqui, como escreveu Gilberto Freyre, “a cultura europeia se pôs em contato com a indígena, amaciada pelo óleo da mediação africana” para criar a nossa identidade suis generis.

No entanto, quando pensamos nessa miscigenação que se deu em terras tupiniquins, é necessário notar que, antes dela, os povos que nos formaram também foram eles mesmos resultados de várias misturas. Lembremos, por exemplo, que a Península Ibérica (Portugal e Espanha) foi dominada pelos muçulmanos vindos da África do Norte por quase oito séculos, e que antes e depois deles houve os lusos, os romanos, os godos, os visigodos, os celtas, os germânicos, os fenícios, os judeus, os sarracenos, os suevos, só para citar alguns. Ou seja, ter raiz no Brasil (pelo menos duas ou três gerações) significa ser essa grande caldeirada de povos que nos deram a cor, a alegria, a bonomia e a malandragem que nos são tão peculiares.
Ilustração: Rebeca Ao

MULATO INZONEIRO
“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo loiro, traz na alma, quando não na alma e no corpo –há muita gente de jenipapo e mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro”, afirma Gilberto Freyre no seu clássico livro CASA GRANDE & SENZALA. Não surpreende, portanto, que na casa da família Guimarães, embora os traços europeus sejam dominantes, o mapa das origens ancestrais, fornecido pela FTDNA na página pessoal do cliente (veja na imagem abaixo), tenha indicado, além da Europa, a América e a África (tanto a negra subsaariana, quanto a semita do Norte) como suas origens ancestrais.

“Olhando esse mapa, sinto que estamos mais ligados do que imaginamos. Tenho uma sensação de surpresa por meus antepassados virem de tantas e tão diversas populações, algumas das quais eu não tinha ideia, nos diferentes continentes”, comenta Eurico, o olhar refletindo cada palavra pronunciada vagarosamente, em admiração, “bateu uma vontade imensa de conhecer cada um desses lugares e os parentes que ainda devem estar por aí”.

Essa sensação de espanto e fascínio também foi relatada por Marcos José Machado Coelho, genealogista de Uberlândia (MG): “Descobri que carrego o mundo em meu DNA. Pois sou descendente de povos dos cinco continentes: América, Europa, África, Ásia e Oceania. Algumas das etnias de que faço parte geneticamente, entretanto, me surpreenderam; mas ter conhecimento delas agora me ajudou a responder questionamentos quanto aos costumes que observei em meus ancestrais, provavelmente vindos de um passado remoto e que de certa forma continuaram vivos através do tempo”.

Imagem: Página Pessoal FTDNA de Marcos Coelho/Reprodução

A mistura genética comentada por eles não é rara no Brasil (observe o infográfico abaixo). Dos 132 brasileiros, das cinco regiões do país, cujos resultados foram compartilhados com o NEWSBASTIDORES, apenas 1 não apresentou pelo menos dois dos três componentes da “brasilidade”, ficando somente entre norte, leste e centro da Europa e oeste da Ásia. Todavia, a explicação logo apareceu: Maria, é brasileira, seus pais, ao invés, são do leste europeu.

Dessa forma, como não pensar em Mário de Andrade e no seu romance Macunaíma, o qual narra, à brasileira, “um passeio étnico que vai desde o nascer do protagonista, descrito como ‘preto retinto’, carregado de marcas do linguajar indígena, e mostrando sua incrível miscigenação caracterizada na mudança de aparência e natureza: ora branco, loiro, com olhos azuis; ora estar como quer, sob a pele de muitos. O indiozinho, da tribo Tapanhumas, não foge do projeto modernista, que, entre outros objetivos, exaltava a mistura de povos e culturas no Brasil”, conforme explica Andréa Mascarenhas, Mestra em Literatura e Diversidade Cultural e Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Essa mistura de povos e culturas é bem entendida pelo Professor de Geografia Celito Mendes, de Uibaí (BA).“Sempre tive certeza de que tinha uma carga genética muito forte de índios tapuias, de africanos e alguma coisa de europeu, e, quando chegaram os resultados, pude perceber que a mistura era ainda maior e em proporções diferentes do que imaginávamos, de maneira a me surpreender um pouco o fato de ser bem mais europeu do que qualquer outra etnia. Porque, quando você olha para mim, a primeira coisa que vê é o meu fenótipo de negro mestiço”.

A riqueza genética do professor Mendes, embora em proporções que o surpreendam, ainda pode ser explicada por Gilberto Freyre para quem “híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto as relações de raça”, pois, uma vez que escasso de “mulher branca” multiplicou-se o colonizador desde o princípio “pelo intercurso com a mulher índia ou negra (...) em vigorosa e dúctil população mestiça”, daí, dizerem os genealogistas que os brasileiros cujos avós, ou mais provavelmente os bisavós, que sejam também nascidos aqui, mesmo que longe da “harmonia racial” imaginada por Freyre, trarão em si as marcas não de um, mas de três ou quatro povos (quando não de cinco ou seis) que formaram a Terra Brasilis e, apesar do passar dos séculos, transmitiu até as gerações contemporâneas o seu material genético.
  
ESCRITO NO SANGUE
Para entender melhor, é necessário pensar que cada um de nós (exceto pelos casamentos entre parentes) terá 2 pais, 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós, 32 tataravós, e assim por diante, formando uma árvore cada vez mais frondosa em direção ao passado. Todas essas pessoas contribuíram, na razão aproximada de 50%, para fazer de nós o que somos .

Assim, cada um de nossos país terão nos legado 50% do seu material; cada um de nossos avós 25%; cada um de nossos bisavós 12.5%, etc. Essas porcentagens, transmitidas através da combinação aleatória do DNA, trazendo com elas a herança genética dos povos dos quais descendemos, também nos legam todas as informações necessárias para fazerem de nós o paradoxo dos indivíduos únicos que dividem geneticamente com toda a humanidade as características e a essência humana.
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"Nós somos, eu acredito, essa colcha de retalhos incrível e emocionante que o meu mapa étnico me revelou. Estamos unidos a todos em menor ou maior grau. E saber disso é libertador!". Diz com voz emocionada a professora aposentada Jaceli Brandão. "A sensação é semelhante a fazer uma viagem fantástica por esse lindo planeta azul, só que, em vez de pegar um avião ou navio, eu preciso simplesmente de mergulhar dentro de mim mesma e de pensar em como todas essas pessoas do meu passado foram, provavelmente sem a estupidez do conceito equivocado de raças, através das gerações e das eras, se unindo, resistindo às fomes, pestes, guerras; chegando até aqui, exatamente onde eu estou agora, imortais, prosseguindo através de mim e comigo em meus filhos, netas, e em todas as futuras gerações".

O que Jaceli descreve parece ser unânime entre as pessoas que fizeram o teste genético: passaram a enxergar o mundo de modo completamente novo. "Eu me vejo de forma diferente desde que recebi os primeiros resultados de DNA há 9 anos", revela Antônio Faria, português radicado nos EUA, "tenho um maior entendimento de como me relaciono geneticamente com populações globais e compreendo melhor como nossa espécie evoluiu e o impacto imenso que o clima exerceu sobre os fenótipos. Compreendo perfeitamente, por exemplo, o por quê de ter a aparência que tenho e de como me conecto com os outros membros da nossa espécie e com os parentes das mais diversas populações como marroquinos, norte europeus, cubanos, turcos, judeus lituanos, entre muitos outros, que me foram apresentados pelos resultados dos testes de ancestralidade", conclui apontando que a possibilidade de encontrar familiares é uma outra ferramenta que genealogistas e pessoas à procura de parentes biológicos têm ao seu dispor com testes como o Family Finder, cujo próprio nome, "Buscador de Família", já informa para que veio.
Foto: Márcio Walter Machado e colaboradores

MOSAICO HUMANO
"Se nos brasis abunda jenipapo na bunda, se somos todos uns octoruns, que importa? É lá desgraça? Essa história de raça, raças más, raças boas, é coisa que passou (...)", declamou acertadamente Manoel Bandeira em seu poema sobre o livro CASA GRANDE & SENZALA.

A miscigenação brasileira é um fato indiscutível, seja ela constante dos quatro povos primordiais da nossa gênese (europeus, semitas, africanos e ameríndios), ou de apenas parte deles; ou ainda, de povos insuspeitos do passado, ou, com as atuais levas migratórias, de novas misturas que começam a somar na biografia de quem somos como povo e nação.

A marca indelével do hibridismo brasileiro, mesmo que, superando as impossibilidades históricas, não conste no "sangue", com certeza constará no modo de ser, de sentir, de ver o mundo, de agregar em vez de afastar, de acolher no seio da família em vez de manter à distância.

Pois somos vocacionalmente, como povo, alma integradora; e, como país, um verdadeiro caldeirão étnico com sua cultura única, mas multiforme, temperada com as especiarias que para aqui trouxeram de todas as partes do globo o colonizador europeu, conforme provam, de forma cabal e irrefutável, os testes de ancestralidade genética - pois o DNA não mente.

Ser brasileiro é ter constantemente "uma sensação de pertença a vários mundos, sem fronteiras, com história e com pluralidade", declara a antropóloga Núbia Guimarães, e completa: "eu, por exemplo, tendo a pele branca, sou de todas as cores, com um só credo e um jeito brasileiro de ser porque, como contavam as histórias de família e nos mostrou o DNA, meus ancestrais foram portugueses, espanhóis, ingleses, africanos, árabes, judeus, ameríndios, ciganos nordestinos, baianos. Sou uma cidadã do/no mundo. Fico feliz em saber que sou essa mistura toda!".

Portanto, ignorando os apelos dos radicais, de um lado e outro, que se enfurecem com brancos usando turbantes à muçulmana ou com pretos buscando seu ancestral judeu; superando comentários racistas estúpidos de jornalistas consagrados da televisão;  entendendo que cada um de nós, como ressaltou na reportagem anterior a esta o Professor Eduardo Del Bem, "é um mosaico" que foi construído ao longo de milhares de anos com o encontro e intercurso de seres humanos diversos na origem geográfica, cultural e na tonalidade de pele, ao se olhar no espelho, ainda que as características físicas deixem evidentes a proveniência de seus ancestrais, pense no que costuma dizer Bennet Greenspan, genealogista e fundador do FTDNA, em suas palestras sobre testes genéticos: Ninguém é 100% alguma coisa.


Uma viagem pelo mundo através do seu DNA 

Comentários

  1. Muito bom texto, e esclarecedor, pena que na pratica no Brasil essa integração racial não é justa, o negro mais retinto e o índio, ainda levam hoje levam as marcas da escravidão e com elas a falta de igualdade social.

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    1. Verdade, Déia! Infelizmente tanto a estupidez pela falta de conhecimento, quanto a estupidez pelo idiotismo levam as pessoas a agirem de forma lamentável no tocante ao conceito errôneo de "raças". Tomara que testes como esses se popularizem e que o conhecimento de que as diferenças em tonalidade de pele, características físicas, etc. são apenas "acidentes de percurso" sejam completamente entendidos. É necessário divulgar reportagens como esta.

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  2. Quero muito fazer o teste e descobrir de onde vieram as pessoas que contribuíram pra me formar, descobrindo meu proprio mosaico!

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