Imagens: Google/compilação
Esta manhã,
olhando as fotos das férias na Escandinávia há dois anos, lembrei de uma
quarta-feira gelada do inverno norueguês que me fez trocar os passeios ao ar
livre na linda cidade de Oslo por uma tarde no Museu Edvard Munch, situado próximo
ao meu hotel.
Afinal, 12
graus abaixo de zero é uma temperatura que convida à apreciação das belezas nos ambientes fechados, não da neve caindo forte e incessante pela cidade – pelo
menos não para um baiano amante do calor dos trópicos, afeito aos pôres do sol
na Ponta de Humaitá, em Salvador.
Naquele dia, no
entanto, a imagem do fim de tarde de que eu iria fruir havia sido pintada numa
tela em 1893 e fazia parte de uma série de quatro quadros, mas se sobressaíra
dentre todos os outros. O Grito, de Edvard Munch, apropriado pelo grande
público nos anos imediatos à Segunda Guerra Mundial e transformado, pela revista Time, num dos
grandes ícones da cultura de massa a partir dos anos 60, estava bem diante de
mim.
Observar
aquele quadro era ter sensações estéticas idiossincráticas; era se sentir
esmagado pelo belo da lucubração que nos remete a viagens internas altamente
individuais; era visitar os recônditos de nossa alma e imergir deles envolto na
feiura dos traços fortes e angustiantes do expressionismo europeu, das cores
quentes e vibrantes em dissonância com o estado de aflição sombrio da
personagem que o compõe.
O Grito, para o
apreciador da alta arte, para o dândi wildiano, ou ainda para os membros da
pequena burguesia, provoca emoções parecidas com as que citei e nos faz querer rechear o texto de palavras difíceis para causar no leitor uma sensação estética meio classe-média-deslumbrada, meio "eu não-sei-o-que-estou-dizendo-mas-falar-bonito-sempre-é-bacana".
Talvez,
por isso mesmo ele tenha se tornado quase um ícone no inconsciente coletivo da
sociedade globalizada, na qual a cultura de uns se reflete sobre todos, em que
tudo se torna um espetáculo a ser não apenas fruído pelas multidões, mas
sobretudo adquirido e readquirido nas formas mais diversas de consumo.
O Grito e Auto-retrato de Edvard Munch |
Daí, não
surpreender o rapazinho chinês que se interpôs exatamente entre mim e o quadro,
com um sorriso ainda adolescente escancarado no rosto enquanto sua namorada
tirava uma, nove, vinte fotos dele em várias poses, sempre apontando para sua
camisa branca onde Homer Simpson, com sua barriga de fast-food estadunidense e seus olhos esbugalhados, fazia a imitação
do ícone munchiano. Parecia que o “barato” ali era mostrar o Homer que algum
pintor sem gosto tinha imitado num museu norueguês.
Logo me vieram
à mente as palavras mordazes de Lazarsfeld e Merton sobre as pessoas que livres
de seus grilhões estariam se valendo “da importante herança cultural da nossa
sociedade – Shakespeare, Beethoven ou talvez um Kant” (eu acrescentaria “até
mesmo um Munch”), mas que “ao invés disso, voltam-se para Faith Baldwin...” e Homer
Simpson, acatando “gostos vulgarizados e assim contribuindo para uma decadência”
estética “cada vez maior” da sociedade.
Ao ver minha
expressão, provavelmente pasmada diante do espetáculo que me proporcionava, o
chinesinho me perguntou se eu também queria uma fotografia "daquele quadro
engraçado". Imediatamente peguei a deixa e indaguei por que ele tirava tantas
fotos junto ao mesmo objeto.
O intuito, ele respondeu, era pôr nas redes sociais para que seus amigos chineses (fãs de Os Simpsons como ele) vissem de onde vinha a inspiração para o desenho. Eu sorri enquanto ele fazia uma última foto e partia - me deixando para trás sozinho com meus pensamentos.
O intuito, ele respondeu, era pôr nas redes sociais para que seus amigos chineses (fãs de Os Simpsons como ele) vissem de onde vinha a inspiração para o desenho. Eu sorri enquanto ele fazia uma última foto e partia - me deixando para trás sozinho com meus pensamentos.
Assim como ele, minha sobrinha pequena também teve seu primeiro contato com
Munch através de uma produção do cinema. No filme, ela conheceu
Pablo Picasso, Salvador Dali, e alguns outros grandes mestres da pintura
mundial, apresentados, regurgitados, explicados, reinterpretados e entregues à
fruição midiática imediata e superficial, no melhor estilo kitsch.
“Oportunamente
adaptados pela indústria cultural (...) acessível a todos como o uso dos
parques de diversão”, como bradaria Lazarsfeld, a quem, caso pudéssemos nos
encontrar, eu poria a pergunta numa paráfrase a são Paulo: mas o que importa se
divulgam a alta arte por porfias, por
emulações, ou por vontade de lucro? O importante é que ela seja divulgada a tempo e a fora de tempo!
Imagens compiladas do filme
Looney Tunes back in action - 2003
O fato é que,
mesmo gozando, nas palavras de Eco, “unicamente uma imitação secundária da
força primária das imagens” sem se remeter a seu sentido original, a cultura do
consumo ajuda a disseminar a vanguarda estética, a sua reinterpretação, ainda
que esvaziada de sentido espiritual, populariza e dissemina a arte que, na pior
das hipóteses, serve para enfeitar o vestuário, quartos e cozinhas mundo afora.
Porque, afinal, “sem uma gota de kitsch não existe nenhum tipo de arte”, diria algum filósofo da estética. O que
existe, no entanto, persistentemente sem resposta, é a pergunta de Umberto Eco: “Como definir o Bom e o Mau gosto?”, seguida de um
adendo: por que a camisa do chinesinho do museu ou a caneca na minha cozinha trazendo O
Grito nas versões da cultura pop do 20th Century Fox e da releitura de Andy
Warhol é menos interessante e menos estética que a obra original de Munch?
Andy Warhol - releitura de Munch:
Munchmuseet/divulgação
Não saberia dizer. No entanto,
kitsch ou não, a arte em grande escala – seja ela pelo lucro ou pela fruição –
torna o mundo mais colorido como provam os emojis nos apps de mensagens instantâneas e na camisa com a estampa de “O Beijo”, de Klimt,
adquirida por 10 euros em outro museu e que eu vestia sob o meu sobretudo
naquela tarde.
😱😱😱😱😱😱😱😱😱😱😱😱😱😱
Um texto de uma riqueza linguística de se admirar. Parabéns! 👏👏👏
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